segunda-feira, 26 de março de 2018

Anarquistas, quando morrem, viram vampiros... What?!


E lá estava eu, no acalanto da concha fantasmagórica da minha luminária na cabeceira da cama, lendo randomicamente alguns dos contos raros de vampiro publicados no excelente Herdeiros de Drácula e tentando esquecer um pouco de mim mesmo e da realidade cada vez mais sinistra do devastado Brasil pós-golpe, quando um determinado trecho do conto "Um Dedo Morto" me faz arregalar os olhos, perder o sono de vez e soltar um "WTF?" no meio da madrugada. O trecho em questão é uma fala do personagem Sr. Square, apresentado pelo narrador do conto como um engenheiro elétrico (profissão pioneira em 1897, quando o conto foi publicado) e como o homem mais sábio, integro e espiritualmente elevado que o narrador já conhecera, um personagem que irá ocupar no conto o papel clássico do detetive do sobrenatural que, por fim, conseguirá vencer e capturar o vampiro da história. Ei-lo:
"— Darei um exemplo, para mostrar as grandiosas possibilidades da eletricidade, usada de forma bruta. Em determinada cidade grande bem no oeste dos Estados Unidos, um lugar avançado também, mais do que Nova York, tinham bondes elétricos pelas ruas para cima e para baixo, para todo canto. Os sindicalistas trabalhando para a companhia exigiram que os não sindicalizados fossem dispensados. Mas a companhia não providenciou. Em vez disso, dispensou os sindicalistas. Tinha na reserva números suficientes dos outros, então preencheu todas as vagas de uma vez. Os sindicalistas não gostaram disso e combinaram que em determinada hora de determinado dia todos os fios deveriam ser cortados. A companhia soube disso por meio de espiões e descarregou, especialmente para eles, três vezes a energia em todos os fios. No momento combinado, os grevistas subiram nos postes para cortar os cabos e desceram dezenas de vezes mais rápido do que subiram, aposto. Então, seguiram as chamadas para os hospitais de todos os cantos para que mandassem maqueiros para carregar os homens aleijados, alguns com pernas quebradas, braços, costelas. Dois ou três quebraram o pescoço. Acredito que a companhia tenha sido incrivelmente misericordiosa, não colocou força o suficiente para transformá-los em cinzas ali mesmo. Talvez a opinião pública não gostasse disso. Mas parou a greve, isso sim. Grande efeito moral, tudo feito pela eletricidade." (grifos meus)
Minha primeira reação, confesso, foi rir.

Mas uma certa deprê não demorou a bater.

Ok, quem se interessa por obras clássicas acaba se acostumando a abstrair os preconceitos e posições políticas questionáveis que os mais diversos autores ostentaram abertamente em suas respectivas épocas, especialmente no caso do horror, que tem de fato no seu DNA (calcado no eterno duelo entre a norma e o desvio) uma certa tendência para o reacionário. Nem precisa ir muito longe, o racismo explícito de Lovecraft já é um exemplo bastante célebre. São os joios que o fã e estudioso aprende a separar do trigo que esses autores cultivaram para o gênero e, mais do que boicotar ou "cancelar", é interessante usar esses choques e conflitos como um aprendizado, seja histórico ou ético, uma constatação de como melhoramos (ou não) como sociedade e o quanto ainda nos falta.

Ilustração de Arthur Twidle para "Vila Glicínia".
"Um mulato enorme e medonho, de feições
amareladas e pronunciado tipo negróide".
Porém, eu diria que esse caso foi um tanto quanto extremo. Não é todo dia que, no meio de uma simples história de vampiro, somos surpreendidos por uma efusiva defesa do assassinato como medida eficiente de controle de greves! 😳 Isso vai um tantinho além de Arthur Conan Doyle nos revelando que o "rosto monstruoso" que aterroriza um policial através de uma janela no conto Vila Glicínia era na verdade um "gigantesco mulato"(!) ou mesmo a tortuosa linha de raciocínio que leva Adam Salton e Sir Nathaniel de Salis a concluir (acertadamente!) que Lady Arabella March é um tipo de monstruosidade primal em O Covil do Verme Branco, de Bram Stoker, um raciocínio que o leitor só consegue acompanhar se compartilhar da mesma misoginia dos dois protagonistas, pressupondo que qualquer mulher que demonstre força, ambição e obstinação não poderia ser meramente humana.

Bem ou mal é possível abstrair exemplos como esses tentando, com alguma boa vontade, reputar esses preconceitos apenas aos personagens e não necessariamente aos autores, ou debitar tudo na conta do "contexto de época," ou mesmo, vá lá, apenas deixar tais detalhes de lado por serem periféricos às linhas gerais das tramas. Evitar "jogar a criança fora junto com a água do banho", por assim dizer. Enfim, concentrar-se no trigo e não no joio. Porém, no caso de "Um Dedo Morto", a introdução do Sr. Square pressupõe uma incômoda aliança com o leitor. O trecho tem uma função narrativa bastante clara: apresentar um personagem que terá uma função central (e heroica) na história. Nenhuma ambiguidade era pretendida. Narrador (e autor) pressupõem a recepção do relato da greve como óbvia e inequívoca, como algo que nenhum leitor em sã consciência poderia discordar ou interpretar de outra forma. Cumprida a função do trecho, o narrador prossegue na certeza de que agora o leitor "naturalmente" compartilha de sua confiança e estima por esse homem tão notável, que sabe tão bem quanto o tio bolsominion no jantar de domingo com a família como se deve lidar com desvios da normalidade, tipo vampiros e sindicalistas.

Incidentalmente, fica implícito que o autor nem ao menos levava em consideração a possibilidade do leitor SER um sindicalista, um grevista ou, enfim, um operário.

"Um Dedo Morto" foi escrito pelo reverendo Sabine Baring-Gould, nobre e clérigo de Lew Trenchard, Inglaterra, e um renomado autor das letras britânicas, verdadeira autoridade em estudos sobre antiguidade e folclore. Autor do notável "O Livro dos Lobisomens", um dos mais famosos compêndios de histórias e lendas sobre o mito (publicado no Brasil pela Editora Aleph) além de Curious Myths of the Middle Ages (Mitos curiosos da Idade Média), consultado por Bram Stoker em sua exaustiva pesquisa para compor Drácula. Um erudito, portanto, um intelectual e respeitado homem de letras e de fé, famoso por seus hinos de exaltação pátrio-religiosa, como "Onward, Christian Soldiers" e "Now Is Over the Day".

Uma pequena amostra de "Onward, Christian Soldiers", hino pleno de empatia cristã. 😒
O conto propõe uma abordagem bastante inusitada na qual o vampiro é uma criatura que vai lentamente se tornando visível e ganhando materialidade conforme se alimenta de sua vítima escolhida. O protagonista/narrador é atormentado por um dedo fantasmagórico que, a cada ataque, "evolui", primeiro para um braço, depois um torso e assim por diante, num processo que culminaria no esgotamento e morte da vítima e simultâneo (re)nascimento do vampiro. Cabe ao Sr. Square a construção de uma armadilha para a criatura, uma espécie de "círculo mágico" criado por eletricidade e magnetismo que captura o vampiro antes que pudesse completar seu último ataque.

É um conto engenhoso que, de certo modo, antecipa vários elementos que se tornariam recorrentes na literatura fantástica do início do século XX. A estranha (e um tanto cômica) situação do narrador, perseguido por um pedacinho de um corpo humano sobrenaturalmente animado capaz de proezas como se esconder em roupas e malas e segui-lo até seus refúgios é bastante similar a The Beast with Five Fingers, de W.F. Harvey, e mesmo The Screaming Skull, de Francis Marion Crawford (ambas histórias com um humor negro bem mais assumido). Além disso, a combinação entre ciência e ocultismo, com aparatos tecnológicos cumprindo a função de objetos arcanos, é uma característica marcante dos mais variados detetives do oculto que se multiplicariam nas pulp fictions do início do século, lembrando bastante as histórias de Carnacki, the Ghost-Finder, de William Hope Hodgson.

Ilustração de Marcus Rowland do pentagrama
elétrico usado por Thomas Carnacki,
muito similar ao protótipo do Sr. Square.
Enfim, o reverendo Baring-Gould não deixou de oferecer ao gênero uma boa quantidade do melhor trigo, com alguns momentos positivamente arrepiantes como a criatura translúcida arrastando-se no chão tentando alcançar sua vítima na penumbra do quarto. Eu até estaria disposto e deixar de lado o joio, como de costume, engolir a "integridade" e a "sabedoria" do Sr. Square como um fato, ao menos durante a leitura, para que a história funcionasse em seus termos e aproveitar o que o conto tinha de melhor a oferecer. Mas a pequena lição de como terminar greves era apenas uma prévia, o susto mesmo ainda estava por vir.

Capturado e subjugado, o vampiro é interrogado (e, implicitamente, torturado) pelo Sr. Square até revelar a verdade sobre si mesmo e sua origem. E... bom, é um trecho longo, mas... leiam aí, enquanto vou buscar um café, vamos precisar:
— Sim... fui malsucedido, sempre fui. Nada funcionava comigo. O mundo estava contra mim. A sociedade estava. Odeio a sociedade. Não gosto de trabalho também, jamais gostei. Mas gosto de me manifestar contra o que está estabelecido. Odeio a família real, a propriedade privada, os nobres, tudo que existe, exceto o povo, quero dizer, os desempregados. Sempre odiei. Não conseguia o emprego que queria. Quando morri, me enterraram em um caixão barato, muito barato, e me deram um túmulo horrível, barato, e um cortejo barato, e nenhum monumento. Não queria nada. Ah! Há muitos de nós. Todos descontentes. Descontentes! Isso é uma paixão, é sim, entra nas veias, preenche o cérebro, ocupa o coração. É o tipo de câncer divino que toma posse do homem inteiro e o torna insatisfeito com tudo e o faz odiar tudo. Mas precisamos de nossa porção de felicidade em algum momento. Todos a desejamos de uma forma ou de outra. Alguns acham que há um estado futuro de graça, então têm esperança e buscam alcançá-la, pois a esperança é um cabo e âncora que se prende ao que é real. Mas quando não se tem tal esperança, não se acredita em qualquer estado futuro, deve procurar por felicidade na vida aqui. Não a conseguimos quando estávamos vivos, então tentamos tomá-la depois de mortos. Podemos fazer isso, se conseguirmos sair de nossos caixões baratos e desprezíveis. Mas não até que a maior parte de nós tenha apodrecido. Se restam um ou dois dedos que conseguem subir à superfície, aqueles caixões baratos se desfazem bem rápido. Então, a única parte sólida que resta de nós consegue puxar consigo o restante que foi para o nada, e saímos tateando atrás dos vivos. Os abastados, se conseguirmos alcançá-los, os trabalhadores pobres e honestos, se não conseguimos. Nós também os odiamos, pois estão satisfeitos e felizes. Se alcançarmos qualquer um desses e conseguirmos tocá-lo, então podemos sugar a sua força vital para dentro de nós, e nos recuperar às custas do indivíduo. Era o que eu estava prestes a fazer com você. Tornar-me célebre. Quase solidificado como um novo homem. Receberia outra chance de viver. Mas eu a perdi. Esse meu azar, perco tudo. Sempre perdi, exceto a tristeza e o desapontamento, disso eu tenho muito. 
— O que são vocês? — perguntou Square. — Anarquistas sem emprego?
 — Alguns de nós atendem por esse nome, alguns por outras designações, mas somos todos um, leais a apenas um monarca: a soberana insatisfação. Somos criados para sentir desgosto pelo trabalho manual, e crescemos vadios, resmungando de tudo e emburrados com a sociedade que nos cerca e a providência que está acima de nós. 
— E como se chamam agora? 
— Como nos chamamos? Nada. Somos os mesmos, em outra condição, só isso. As pessoas certa vez nos chamaram de anarquistas, niilistas, socialistas, niveladores, e agora nos chamam de influenza. O vocabulário adquirido sobre micróbios e bacilos e bactérias. Malditos sejam os micróbios, bacilos e as bactérias! Somos a influenza, somos os fracassos sociais, os insatisfeitos com tudo, saindo de nossos túmulos horríveis e baratos na forma de doença física. Somos a influenza. 
— Aí está, creio! — exclamou Square, triunfante. — Não disse que todas as forças estavam relacionadas? Se é o caso, então todas as negações, as deficiências de força são a mesma em suas diversas manifestações. Falam de insatisfação divina como uma força que impulsiona o progresso! Besteira, é uma paralisia de energia. Transforma tudo o que absorve em ácido, inveja, rancor, amargura. Não inspira nada, mas apodrece todo o sistema moral. E aqui está: insatisfação moral, social, política em outra forma, não aspecto. Só isso. O anarquismo está para o corpo político como a influenza para o corpo físico. Enxerga isso? (grifos meus)

Oh, my eyes, my eyes!
Oh, my eyes! My eyes! 😵

Enxergo, enxergo sim. Enxergo que, nesse caso em particular, quase se pode dizer que o trigo não era o verdadeiro foco do autor, mas sim uma isca para fazer o leitor engolir o joio.

Mais do que uma alegoria (algo que para muitos autores de fantasia seria questionável por si só, independente do espectro político), "Um Dedo Morto" é, de fato, uma parábola moral. Uma "pregação" por parte do bom e nobre reverendo. Uma lição de moral comicamente rasa e simplória, mas inequívoca. Claramente direcionada para uma classe muito específica de leitores. Com toda certeza, sindicalistas e operários não eram os leitores aos quais Baring-Gould se dirigia.

Por certo eu não era o leitor ao qual Baring-Gould se dirigia.

Eu sequer seria levado em consideração por Baring-Gould como um possível leitor.

E, mesmo cem anos depois, isso continuava pateticamente claro.

Se tivesse lido o conto em outra época provavelmente não teria me sentido compelido e tecer reflexões a respeito como estou fazendo agora, só teria dado umas gargalhadas e deixado de lado. Talvez apenas passasse um tempo me perguntando como um autor da envergadura de Baring-Gould pôde descer ao ponto de, basicamente, arruinar a suspensão de descrença de sua narrativa e a credibilidade de sua criatura com uma intromissão tão grosseira e desajeitada de suas próprias crenças pessoais no clímax da história! Me perguntaria, talvez, como um erudito presumivelmente orgulhoso de sua reputação como intelectual deixaria registrado nas letras uma verdadeira confissão de ignorância a respeito de escolas inteiras de pensamento filosófico/político em plena efervescência no contexto da época, jogando num mesmo balaio anarquismo, socialismo, niilismo e o que mais fosse, reduzindo questões sociais complexas a uma parábola a la cigarra e formiga meramente moralista e... enfim, boba.

Mas ler isso hoje, no momento político assustador que o país atravessa... foi um tipo de choque. Como repentinamente, ao virar de uma página, se deparar com um espelho do passado refletindo um futuro sombrio cada vez mais possível. Um espelho que adensa em si recorrências das mais sinistras. A História repentinamente se impondo como um círculo que sempre retorna ao mesmo abismo. Um abismo onde até intelectuais, homens de letras e sujeitos do conhecimento, religiosos e eruditos, rebaixam-se às simplificações mais grosseiras, aos preconceitos mais estúpidos, às falácias mais desonestas, tudo em nome de um pavor patológico que sentem diante da mais remota possibilidade de perder (ou até mesmo relativizar) suas posições de poder e privilégio diante da gigantesca massa explorada que sustenta seu frágil universo, um medo mil vezes maior, pelo visto, do que qualquer orgulho intelectual.
Um dos momentos mais lamentáveis do fim da minha adolescência foi quando, com as malas nas costas rumo a São Paulo, uma vizinha, até então admirada por falar várias línguas e ter o apartamento forrado de livros, me disse que adora a capital paulista, o que estragava era a quantidade de nordestinos para “emporcalhar a cidade”. (Matheus PichonelliDesembargadora que difamou Marielle é a cara da nossa ignorância diplomada)
Tanto ontem quanto hoje. As similaridades entre um discurso escrito numa Inglaterra vitoriana e os textões de uma direita delirante nas redes sociais do Brasil pós-golpe é algo que desconcerta, atordoa e até aterroriza. E deve mesmo. Como num meme que tem circulado depois do assassinato político covarde da vereadora Marielle Franco: "Se você não está com medo é porque ainda não entendeu".

Afinal não faltam homens sábios, íntegros e espiritualmente elevados, ontem, hoje e, pelo visto, sempre, que acionariam pessoalmente, e com prazer, a chave que liga a eletricidade para nos transformar em cinzas. Homens que farão todos os tipos de malabarismos argumentativos para nos reduzir, em sua subjetividade, a meros vampiros que devem ser exterminados, belo bem das empresas, do lucro, do capital, da pátria, da família, de Deus.

Lord Ruthven, do conto pioneiro
The Vampire de John Polidori,
aqui na versão em quadrinhos da
Marvel Comics publicada em
Vampire Tales #01.
Mas talvez valha lembrar que, a despeito dos esforços do austero reverendo e seus pares, a imagem do vampiro que acabaria de fato vingando e se estabelecendo como uma parte indelével da cultura geral do final do século XIX e por todo o século XX, a imagem mais prontamente reconhecível em qualquer lugar do planeta, até por quem não tem o menor interesse no gênero do horror, não é nem de longe a de um anarquista translúcido, mas sim o vulto imponente do aristocrata, do orgulhoso filho da nobreza ou descendente das mais respeitáveis famílias burguesas, o grande senhor de terras, em seu castelo sobre a colina, abastado e indolente, ocupando seu tempo e energia apenas para frequentar os mais requintados círculos sociais e para atormentar e sugar vorazmente o sangue de servos, trabalhadores e camponeses que vivem à sombra de suas posses e influência. Essa é a imagem que permanece viva através das mais diversas releituras, desde Lord Ruthven, de Polidori, fundamentando-se em Drácula, de Stoker, até chegar às interpretações mais modernas do mito, como Lestat de Lioncourt. E não é por acaso.

Exige bem menos suspensão de descrença. 😉
Lestat de Lioncourt vivido por Tom Cruise
em Entrevista com o Vampiro (1994).
Christopher Lee como a mais fiel recriação da figura
de Drácula, em Count Dracula (1970)

4 comentários:

  1. Lorde, você escreve tão bem. Já pensou em publicar um livro? Adoraria ler um livro seu sobre literatura ou cinema. Não perco nenhum dos sues posts.

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  2. Não sei porque, mas toda vez que entro no seu blog e vejo essa foto desse homem solitário, penso logo em des Esseintes. E imagino você, como o personagem de Às avessas.... Go figure...

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