sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Déjà Vu - Um Espetáculo Perdido no Tempo e as Histórias que nos Dão Forma...


Alguns pensamentos sobre o espetáculo teatral "Déjà Vu", de Marcos Calegari, Tassia Guarnieri e da turma vespertina de 2015 do projeto "Energia em Movimento" da Elektro, uma experiência efêmera, que talvez nunca se repita, mas que, justamente como um déjà vu, continuará ressoando em quem se deixou tocar...

Li em algum lugar (lamento, não consigo lembrar onde... acho que pode ter sido o Neil Gaiman, mas é bem provável que ele estivesse citando alguém, que possivelmente estava citando outro...) que as pessoas gostam de acreditar que dão forma às histórias, mas o contrário é muito mais próximo da verdade.

Maravilhosa frase, plena de mistério. Eu poderia estraga-la agora começando a dissertar sobre arquétipos, motivos repetitivos, eterno retorno, devires... mas podem ficar tranquilos, não estou aqui pra fazer nada disso. Não ondularei a ressonância do mistério. Só vou deixar claro que, quanto digo "mistério", é num sentido quase ocultista: aquilo que está sob o véu... mas que é sabido, plenamente sabido. Lá no fundo você entende, todos entendemos, mas se tornará vazio ou mesmo tolo se tentamos explicar.

Já ouviu a expressão déjà vu? Sabe do que se trata? As definições as vezes variam. Há quem diga que é a sensação de já ter vivido uma determinada situação, sem conseguir lembrar onde, quando ou como. Não é bem isso. Ter um déjà vu é ter a convicção de já ter vivido algo que você SABE que jamais viveu. Você tem certeza absoluta que nunca aconteceu antes, muitas vezes seria até impossível ter acontecido, mas a sensação persiste ainda assim. Enigmático, não? Novamente, seria tolice reduzir o fenômeno a uma das trocentas explicações possíveis, científicas e/ou místicas, mas nada nos impede de fazer uma rápida relação: será que ter um déjà vu não teria alguma coisa a ver com, digamos, dar-se conta de fazer parte de uma história, muito maior e mais antiga do que você?

A cada momento, mesmo sem perceber, alguém se tornaria Hamlet... ou Horácio... ou quem sabe algum dos coveiros. A desgraça pode se abater de uma hora pra outra e então você também é Ahab, perseguindo sua baleia branca particular. Ou Ismael, submetido a Ahab, tentando sobreviver à tirania de poderes muito além de seu controle. Você é Madame Bovary em duelo perpétuo com um mundo no qual não se encaixa, é Catherine Earnshaw (ou Heathcliff... ou ambos). Você é a casa fraturada onde Madeleine e Roderick Usher devoram-se mutuamente num incesto sagrado. Como espectros, tais personagens (entidades... seres... ideias... sombras...) pairam entre nós, imortais, nos significando, (re)vivendo em nossa pele, em nossas entranhas. Será que já estive aqui antes? Já atravessei esse pântano sob essas mesmas nuvens tristonhas? Já fui herói? Tolo? Bandido? Covarde? Traidor? Santo?

"Como todos os homens da Babilônia, fui pro-cônsul; como todos, escravo; também conheci a onipotência, o opróbrio, os cárceres. (...) Heraclides Pôntico conta com admiração que Pitágoras se lembrava de ter sido Pirro e antes Euforbo e antes ainda um outro mortal; para recordar vicissitudes análogas não preciso recorrer à morte, nem mesmo à impostura." (Jorge Luis Borges - A loteria da Babilônia)

Talvez essas grandes histórias pareçam muito distantes, muito titânicas para que soe concebível uma identificação assim, mas provavelmente essa impressão se dê por terem suas versões "oficiais" na forma de romances, peças, contos, por mais variações e derivações que tenham gerado. Mas o que dizer daqueles conjuntos de histórias de tradição oral que chamamos de folclore, lendas ou contos de fadas?

A expressão contos de fadas é uma figura de linguagem, usada de forma bastante livre, para descrever o grande volume de narrativas infinitamente variadas que eram e ainda são oralmente transmitidas e difundidas mundo afora — histórias anônimas que podem ser reelaboradas vezes sem fim por quem as conta, o sempre renovado divertimento dos pobres. (Angela Carter - 103 Contos de Fadas

Narrativas que atravessam gerações, sempre recontadas, sempre reescritas, velhas mas jovens em cada relato fresco, desafiando qualquer tentativa de fecha-las numa forma definitiva. Ora lúdicas, ora sádicas. Melancolicamente alegres ou assustadoramente hilárias. A cada novo narrador seus personagens, temas, significados, recriam-se, transmutam-se, ressoam e, por mais desinteressado que você seja, ao ouvir falar numa casa feita de doces, em crianças solitárias perdidas na floresta, em princesas amaldiçoadas a dormir para sempre, ursos mal humorados que adoram mingau, sapatos de cristal que revelam identidades, lobos peludos por dentro e homens que tem as sobrancelhas juntas, você irá sentir a já familiar sensação de déjà vu.

Não por acaso, "Déjà Vu" foi o título adotado por um espetáculo teatral que, extrapolando a tradição de efemeridade típica das artes cênicas, foi apresentado no Centro Cultural de Rio Claro/SP em apenas um único dia: 27 de outubro de 2015. Ainda que com três intensas sessões (sem contar um ensaio geral de manhã) foi uma experiência tão fugaz quanto uma história contada ao redor da fogueira (isso ainda existe?) mas que não será facilmente esquecida por quem a vivenciou, seja como público ou como intérpretes (se é que tal diferenciação é cabível).

O espetáculo, dirigido e encenado por Marcos Calegari e Tassia Guarnieri, com figurinos de Tania Guarnieri e assistência geral de Ju Paié (que também é autora das fotos desse post), foi o resultado de um processo didático de criação coletiva, uma daquelas peças de conclusão de cursos de iniciação em artes cênicas, algo que nem sempre resulta em espetáculos com vida própria. Não é uma observação maldosa, quem tem uma proximidade maior com o teatro sabe o quão complexo é desenvolver uma dramaturgia para uma turma de 20, 30 alunos sem perder o foco e o aproveitamento didático. O elenco de "Déjà Vu", pra complicar, misturava alunos de idades muito diferentes, desde crianças de onze anos até jovens de 19. Mesmo quem não é da área pode imaginar as dificuldades de conciliar energias tão diversas num resultado que seja mais do que uma mera avaliação ou prestação de contas dos objetivos de curso.
 
Nesse contexto, trabalhar com contos de fadas poderia ter sido uma saída fácil. Poderia... se a ideia fosse meramente recontar - de forma previsível e comportada - as histórias tais e quais seus registros nos livros infantis mais populares. A aposta dos encenadores foi mais arriscada e, consequentemente, mais recompensadora. Pesquisar a fundo as diversas versões primitivas das histórias que fossem surgindo dentro do processo cênico (nada das versões mercantilizadas da Disney que fazem a alegria de tantos grupos medíocres de teatro infantil) e descobrir em cada aluno, tanto no jogo, quanto individualmente, quais histórias lhes davam forma. Quem, mesmo sem suspeitar, já era Cinderela? Ou Chapeuzinho? Ou Cachinhos Dourados? Quem dormia num sono sem sonhos esperando que algum beijo do além lhe despertasse? Quem seria Maria para Joãozinho, e Joãozinho para Maria? Algo de formiga na cigarra? Algo de cigarra na formiga? O espelho no fundo de um coração que chora jurando: "tu és a mais bela". A longa e solitária jornada por uma estrada longa e um caminho deserto até a casa da vovó. Um caçador eternamente batendo as matas em busca do lobo escondido dentro de si. As bruxas, as feras, as madrastas, as belas. Histórias e personagens com fronteiras indistintas, mesclando-se, recombinando-se, falando em uníssono. Histórias que parecem sussurrar: "suas dores não são só suas, foram vividas uma, duas, muitas vezes... por muitos outros você".

Essa característica de sonho público é uma característica da arte popular, ainda que bastante mediada por interesses comerciais, como é atualmente, em suas manifestações nos filmes de terror, no romance barato e nas melodramáticas séries de televisão. (...) Agora temos máquinas que sonham por nós. Mas nessas engenhocas video-eletrônicas pode estar a fonte de uma continuidade, e mesmo transformação, da arte de contar e representar histórias. A imaginação humana é infinitamente flexível e sobrevive à colonização, ao deslocamento, à servidão involuntária, à prisão, às restrições feitas à língua, à opressão das mulheres. (Angela Carter - 103 Contos de Fadas)

Vivemos uma época impaciente, uma época que parece teimar em fingir que o mundo começou no exato dia em que nascemos, mas mesmo assim as velhas histórias ainda encontram meios de nos alcançar, de nos atravessar. E (nem é preciso dizer) crianças e adolescentes são particularmente sensíveis à sua influência, por mais que (acreditem) desconhece-las. Num processo de auto-descoberta por vezes até doloroso, a turma vespertina do projeto "Energia em Movimento" da Eletro compôs um espetáculo com momentos de um lirismo arrebatador. Como é de praxe em peças de encerramento de curso, uma parte significativa do público presente nas três sessões eram pais, parentes e amigos. O que eles viram e reconheceram não foi apenas fragmentos subvertidos e estilizados de Cachinhos Dourados, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, etc... mas pedacinhos pungentes de algo de muito forte e profundo em seus filhos e netos, algo que (como as histórias e seus déjà vu) é familiar, é sabido, profundamente conhecido, mas só pode te atingir de verdade quando refletido em forma de poesia, o velho e tão falado espelho da arte (não como relato, não como explicação). Os abraços e lágrimas ao fim das sessões, toda aquela aparente pieguice sentimentaloide pra quem observa de fora com o coração cínico, era mais do que verdadeira, era a rara e quase esquecida catarse. Ainda existe, por incrível que pareça, só se tornou muito mais difícil de achar.



Pode parecer nonsense nesse mundo que tenta regular até as vibrações moleculares segundo a lógica de mercado que um espetáculo (ou qualquer expressão artística) já justifique sua existência só por esse nível pessoal e íntimo, essa relação direta entre um número estatisticamente irrelevante de artistas e espectadores (insisto: quem será quem?), mas suponho que talvez seja justamente isso que o justifique, que o torne até indispensável. Mas "Déjà Vu" vai ainda além disso. Se tivesse oportunidade de voltar a ser encenado (o que parece improvável, dada a dificuldade de reunir novamente aquela garotada tão esmagada por obrigações de escola, trabalho e vida), novos públicos poderiam ser capturados pelo senso de ironia surreal da peça, seu fascínio ora ingênuo, ora mórbido. Seriam assombrados pela espectral e lynchiana sequencia dos ursos ("Quem comeu o meu mingau?"); pela desvairada anarquia dos drugues... perdão, lobos ("E, quando vir o que fez: sorria"); pela intensidade febril da dança do veneno das maçãs e da coreografia das gatas borralheiras. "Déjà Vu" jamais desejou ser linear, nem excessivamente coerente, ainda que tenha algo a ensinar, algo de vital para muito além das explicações. Se tivesse continuado, teríamos entendido melhor? Intuído algo mais? Descobriríamos a "moral da história" que tantos narradores evocaram para seus contos? Não sei... nem sei se histórias precisam de uma moral.




Talvez seja melhor assim. Nesse tempo relativamente curto eles já parecem ter crescido tanto, mudado tanto. Há, de fato, algo de poderoso na efemeridade e talvez seja um erro tentar repetir um estado de graça. Certas histórias, afinal, só são contadas uma vez (já nos dizia Neil Gaiman, no lendário número 9 de Sandman), como os ritos de passagem que perdemos nessa época, os verdadeiros ritos, não seus pastiches capitalisticos. E não teria sido isso que testemunhamos (e participamos) naquela já perdida terça-feira de outubro? Desde a entrada do público, convidado a deixar para trás a relativa segurança das poltronas do teatro e se instalar dentro do palco italiano, em arquibancadas montadas nas coxias, participamos da lenta construção de um ritual, uma invocação dos antigos personagens imortais... um estado de comunhão. A peça não começava no abrir, mas sim no fechar das cortinas, encapsulando todos nós - atores, espectadores, encenadores, adultos, crianças, velhos, reais, imaginários, vivos, mortos - nesse útero de histórias. Um círculo de poder. "Fique aqui, conosco", sussurravam as vozes na floresta, estendendo as garras ansiosamente para puxar a pequena Maria para a escuridão. "Vocês vão se lembrar", zombavam os lobos, "vocês vão se lembrar de nós", enquanto o cortejo deslizava lentamente pelo palco, escorregando até o suposto "lugar da plateia" para aplaudir preguiçosa e zombeteiramente a audiência confusa. E foi estranho, talvez desconfortável... Não foi pra ouvir contos de fadas que viemos? A quanto tempo estamos aqui? O que eu fazia lá fora antes de entrar? Quem eu era antes dessa noite? Por que eu era? A noite dos tempos está sobre nós, a tempestade ruge lá fora, mas aqui dentro está quente, aqui dentro estamos seguros. Se algo quisesse nos fazer mal, estaria nos espreitando aqui, no canto mais distante e escuro da floresta? Nunca confie no contador de histórias, confie apenas na história. Vamos contar apenas mais uma então, para espantar o frio, para nos manter aquecidos. Tem tanta coisa ruim lá fora... E quem quer crescer, afinal? Só mais uma história, então. Só mais uma. Você lembra dessa? Não lembra alguma coisa que já ouviu em algum lugar? Como era mesmo? Ah... é claro...

Era uma vez...

E depois?

Esqueci...



Texto dedicado ao elenco de "Déjà Vu" que, como notaram, optei por não mencionar nome por nome pois são muitos e eu não queria deixar ninguém de fora. Mas podem se apresentar nos comentários. =)

Boa noite, crianças...

Nenhum comentário:

Postar um comentário