Com essas encantadoras palavras, o quadrinista francês François Bourgeon dá início a cada episódio de sua fascinante tragédia sobre a Idade Média, sem dúvida, uma das mais perfeitas HQs de todos os tempos, digna de figurar entre as mais importantes obras históricas de qualquer mídia.
Com base numa cuidadosa e exaustiva pesquisa, Os Companheiros do Crepúsculo é um clássico das HQs européias. Uma dessas obras-primas que demonstram o potencial quase ilimitado das histórias em quadrinhos como forma de expressão artística. Infelizmente, a trilogia nunca foi publicada no Brasil e as luxuosas edições portuguesas da finada editora Meribérica/Líber estão fora de catálogo a mais de quinze anos. Fato ainda mais lamentável quando consideramos a enorme aceitação da temática medieval pelo público jovem, especialmente entre os intercambiáveis grupos de fãs de O Senhor dos Anéis, As Brumas de Avalon e dos jogos de RPG.
O primeiro volume, O Sortilégio do Bosque das Brumas (48 p.), nos introduz no século XIV, em plena idade média, na Europa feudal. Provavelmente, a pior época e lugar para uma mulher viver, especialmente alguém como a bela ruiva Mariotte, criada por avó feiticeira, versada nas tradições das antigas religiões pagãs. Vivendo isolada com a avó, Mariotte é mal vista pelos habitantes da aldeia próxima, especialmente por um detestável mancebo de nome Anicet, que não cansa de atormentá-la. Por fim, num rompante de raiva após um trote particularmente cruel, a moça indica o caminho da aldeia para uma horda de soldados desertores, resultando num saque violento e o massacre de cada homem, mulher e criança. Por ironia, o único a escapar vivo é o próprio Anicet.
Declarada maldita pela avó, por ser responsável por tanto sangue derramado, Mariotte inadvertidamente torna-se uma peça importante num jogo de proporções míticas que começa a ser travado quando ela e Anicet tornam-se servos de um misterioso cavaleiro de rosto deformado que vaga pelo mundo numa cruzada pessoal contra as forças do mal. Outrora cruel e impiedoso, esse homem sombrio traz na consciência a responsabilidade pela morte da única mulher que o amou e uma maldição que o torna um joguete da guerra ancestral das três forças que regem o universo e o gênero humano: a força branca, a força rubra e a força negra. Seu escudo ostenta as cores da vida e seu rosto arruinado espelha as marcas de uma existência dedicada à morte e à destruição. Ao atravessarem o Bosque das Brumas, os três improváveis companheiros acabam capturados por uma raça de pequenos duendes, que obrigam o cavaleiro a caçar um monstro que assombra a região.
As tramas desses dois primeiros álbuns se passam no interior de sonhos compartilhados pelo cavaleiro, por Mariotte e pelo detestável Anicet, e funcionam quase como prólogos (na verdade, o termo mais apropriado seria presságios) do decisivo terceiro volume, quatro vezes maior que os anteriores, no qual o realismo histórico ganha ainda mais impacto graças à irrealidade das partes iniciais.
Em O Último Canto das Malaterre (144 p.), após uma longa jornada, os três amigos chegam à cidade de Montroy onde, finalmente, o cavaleiro descobre toda a verdade sobre a linhagem de sua falecida amada Blanche e suas irmãs Carmine e Neyrelle. Uma dinastia de mulheres descendentes de fadas e sereias, que parecem personificar as três forças que tanto assombram os sonhos do Cavaleiro.
Numa narrativa complexa, repleta de símbolos, sinais e mistérios, Mariotte conhece novos e fascinantes personagens: uma trupe de comediantes, um peregrino caçador de lobos, um enamorado noviço e um estranho ancião cavalgando solitário pelas colinas. Todos parecendo conduzi-la, de uma forma ou de outra, numa intrigante jornada paralela à de seu mestre.
Símbolos, sinais, enigmas, recorrências permeiam toda a trama, realçando o caráter arquetípico das três forças que se fazem sentir das mais diversas formas (cores, imagens, misteriosas coincidências), mas principalmente por meio das fascinantes personagens femininas que, ora de forma sutil, ora de forma evidente, revelam-se como trindades: a loira, a ruiva e a morena; as três faces da Deusa - a Lua, o Sol e a Escuridão; a alma, a vida e a morte; o amor, a paixão e a dor; a luz, o fogo e as trevas; o número de associações é incalculável, os incontáveis aspectos se complementam sem que o autor jamais precise ser óbvio.
Sem sequer terem consciência disso, os demais personagens funcionam como catalisadores dos acontecimentos que conduzem a esse destino (sendo o mais inesperado o papel final desempenhado por Anicet, cujo último e heróico ato surpreendeu a ele próprio muito mais do que qualquer outro imaginaria), mas apenas Mariotte (talvez) teria condições de evocar um sentido para tudo o que acontece, coisa que ela - sabiamente - jamais tentaria fazer.
Uma obra magnífica e inesquecível, capaz de sobreviver a infinitas releituras, sempre revelando um aspecto novo, um elemento antes desapercebido. Os desenhos de Bourgeon são de uma riqueza de minúcias absurda. Cada quadrinho reproduz com perfeição as inúmeras facetas da Idade Média: vestimentas, arquitetura, arte, paisagens, tipos humanos... O leitor sente-se transportado para outra época, o que torna Os Companheiros do Crepúsculo uma importante obra de referência histórica, uma viagem no tempo, que ganha um interessante reforço graças à tradução da Meribérica/Líber, cujo português "de Portugal" soa adequadamente "antigo", refinado e lendário aos ouvidos impacientes de hoje.
Quanto às edições em si, são simplesmente perfeitas: papel de primeiríssima linha, encadernação luxuosa, formato gigante, um primor que, infelizmente, tornava os álbuns caríssimos mesmo na época de seu lançamento, ainda mais por serem importados. Mas a leitura valia cada centavo. Resta torcer para que alguma editora desperte e traga de volta do limbo essa obra prima para uma nova geração de leitores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário