terça-feira, 31 de outubro de 2023

Sobre Bruxas Malvadas no Folk Horror Britânico dos Anos 60 e 70


Oh céus... já é Halloween outra vez, né?🙄 Então acho que o negócio é falar de bruxas?🤔

Tá, mas, se me dão licença, vamos falar de bruxaria raiz, aquela que dá cagaço e faz os cristãos se esconderem debaixo da cama. Afinal ninguém merece bruxa metida a boazinha, com o manualzinho de wicca debaixo do braço, implicando com as peladices das amiga na floresta.😜

"Pacto com o Diabo"
Witchcraft (1964) de Don Sharp
Brincadeiras(?) à parte, imagino que eu não seja o único garimpeiro do cinema de horror das antigas que se vê perplexo diante da naturalidade com que o horror britânico dos anos 60 e 70 (re)apresenta a figura da bruxa medieval como indubitavelmente genuína e maligna, meio que dando a entender que os inquisidores tinham toda razão de condena-las à fogueira.😳

Enfim, não sou historiador, só um connoisseur de terror gótico mais ou menos interessado em todas as variantes da ficção fantástica, então não vou me aventurar a debater essa aparente permanência do imaginário da Idade Média na cultura pop de uma Inglaterra (a princípio) contemporânea. Me limito a revisitar alguns dos títulos que me parecem mais significativos do período e aprecia-los naquilo que têm de melhor em termos artísticos, a despeito de quão questionáveis possam ser em termos éticos e sociais.

Lon Channey Jr. checando a
maquiagem de Yvette Rees,
como Vanessa Whitlock.
E o fato é que, ainda que nossas capacidades algoritmicamente reduzidas de lidar com ambiguidade e contradição tenham uma dificuldade cada vez maior de processar isso, várias dessas obras têm um lugar indiscutível entre os clássicos do folk horror.

Não que seja o caso de Witchcraft (1964) de Don Sharp, um filminho menor em quase todos os aspectos, mas curioso como ponto de partida pela forma desconcertante com que aparenta pressupor que iremos simpatizar automaticamente com protagonistas que sequer se questionam de que as terras da família foram de fato roubadas por seus ancestrais, e que tanto a feiticeira ressuscitada de Yvette Rees quanto o atual patriarca do clã expatriado, vivido por Lon Chaney Jr., têm todo o direito de estarem putos, mesmo que sua vingança acabe se abatendo sobre pessoas cujo único crime, tecnicamente falando, seja continuar usufruindo de uma herança.

Seria o bastante pra que Vanessa Whitlock possa ser tão "malvada" quanto quiser ser?

"Horror Hotel"
The City of the Dead (1960) de John Llewellyn Moxey
Uma coisa é fato, Elizabeth Selwyn não está nem aí se tem justificativa pra ser maligna.😈 Dentre os grandes títulos do folk horror britânico nos anos 60, The City of the Dead (1960) talvez seja o mais emblemático dessa tendência de abraçar o folclore da Idade Média sem maiores questionamentos e/ou problematizações.
Ao contrário, chega a dar a entender, nas aulas do professor Driscoll de Christopher Lee, que a ideia de bruxas como parteiras e curandeiras inocentes perseguidas pela inquisição é uma cobertura conveniente para a manutenção de modernos covens de adoração ao tinhoso. E se Venetia Stevenson parece incapaz de se dar conta de que tem algo de muito errado naquela enevoada vilazinha de Massachusetts, é justamente porque adota um prisma por demais contemporâneo nas suas pesquisas sobre bruxaria para o seu TCC.

Patricia Jessel como Elizabeth Selwyn,
a bruxa para quem até Christopher Lee
abaixa a cabeça.
É uma abordagem espirituosa, não dá pra negar. E, ao contrário do Witchcraft de 1964, John Llewellyn Moxey nos entrega aqui uma obra cinematograficamente impecável, deslumbrante em quase todos os sentidos. Com uma atmosfera lúgubre e melancólica que vai nos envolvendo, junto com a encantadora protagonista, numa espécie de pesadelo ancestral em que nossas sofisticadas sensibilidades seculares simplesmente não têm lugar (de fala?).

Patricia Jessel se diverte a valer com a sua insidiosa e irredimível feiticeira, dissimuladamente dando corda pra que a ingênua estudante se enforque, com um sorrisinho cínico sempre fixo no canto dos lábios, e o roteiro ainda se estrutura em torno de um plot twist que apenas um único outro clássico, lançado naquele mesmo ano, já havia ousado se valer até então (e, ao que tudo indica, não foi plágio, já que os dois filmes foram rodados quase que simultaneamente).

Em suma, uma mais que notável overture para a lendária Amicus Productions (aqui ainda Vulcan Films) que eu até diria ser mais refinada e esteticamente ambiciosa que qualquer outro dos góticos britânicos que o estúdio viria a produzir nas duas décadas que viriam, o que pra mim compensa lindamente o relativo mal estar de certas passagens mais reaças do enredo de Milton Subotsky, em especial no clímax, que deixa bem evidente que o que Deus curte mesmo é uma bruxa bem passada.🔥

"O Estigma de Satanás"
The Blood on Satan's Claw (1971) de Piers Haggard
A chegada dos anos 70 por certo não diminuiu esse mal estar, mas não deixa de emprestar uma nova perspectiva para essa estranha insistência por uma mentalidade Middle Age em plenos tempos da New Age. Se mantivermos em mente que ainda não fazia nem dois anos desde que a Família Manson acabou com o sonho do movimento hippie com os assassinatos Tate/La Bianca, a ideia de uma seita de adolescentes que tenta reconstituir o diabo a partir de pedaços de seus próprios corpos em The Blood on Satan's Claw (1971) começa a fazer muito mais sentido.

Eu iria além: uma vez feita essa associação, não tem como ver aquele diabo coxo baixinho, peludo e saltitante como qualquer outra coisa. E você pode acabar se dando conta de que está torcendo pro juiz inquisidor de Patrick Wymark, quando ele parte pra cima daquele bicho patético com o facão abençoado pelo Senhor.

É doido como o cinema de horror, quando efetivo, consegue dar uma sacudida nas nossas convicções, não é?😉

Linda Hayden, como Angel Black,
dando uns malhos no Charles Mans...
digo, no diabo coxo.😉
Não que eu ache que Piers Haggard tivesse plena consciência de que estava dando uma espécie de resposta reacionária ao desencanto dos ideais da contracultura. Tendo sempre a achar que artistas simplesmente se deixam atravessar pelos miasmas do momento e expressam, da melhor forma que podem, não necessariamente as suas convicções, mas sim suas perplexidades. E, nisso, o que seria apenas mais um daqueles típicos exploitation da Tigon Films, mirando (como sempre) num público jovem e cheio de hormônios, acabou atingindo em cheio adultos tomados pelo pavor diante de uma juventude que não conseguem mais compreender ou se comunicar, isolada em seus próprios grupos, com suas linguagens e valores secretos, deixando-se seduzir por um tipo de mal que vem de algum lugar lá fora, mas se manifesta dentro, debaixo de suas próprias peles.

Nesse contexto, a Angel Blake de Linda Hayden é muito mais do que a bruxa malvada de uma trama de bruxaria, ou mesmo uma atriz que se entrega muito bem ao seu papel (que ela sequer tinha experiência para dominar). Ela é um avatar. O ponto focal. O Anjo Caído no sentido mais legítimo do termo. Uma imagem eternizada de um nó que nunca pôde ser de fato desfeito.

E o gótico britânico jamais irá esquece-la.🥀

"O Uivo da Bruxa"
Cry of the Banshee (1970) de Gordon Hessler
Dando uma emaranhada a mais nesse nó (afinal, que graça tem simplificar se a gente pode complicar?), outro filme desse comecinho dos anos 70 que aparenta reafirmar o imaginário da Idade Média no gótico britânico contemporâneo é o Cry of the Banshee (1970) de Gordon Hessler.

Nele, a feiticeira Oona, vivida pela veterana atriz austríaca Elizabeth Bergner, também não é nenhuma parteira ou curandeira inocente, muito menos uma "bruxa boa dos bosques" em comunhão com as forças da natureza, mas sim uma legítima praticante de bruxaria e matriarca de um coven de adoradores do demônio particularmente fanático, que curte passar as noites promovendo orgias na floresta (mas sem peladice, o filme pode ser exploitation, mas a produção continua sendo da American International Pictures) e invocando Satã e as forças das trevas para levar a desgraça à casa de seus inimigos.

Elizabeth Bergner como Oona,
invocando Satã em nome da justiça.
Acontece que o tal inimigo é ninguém menos que Vincent Price, mais maligno do que nunca na sua fase de Witchfinder General no cinema de horror britânico, e isso, por si só, já acaba com aquele lance de se pegar torcendo pelo inquisidor.

O problema é que a maldição da feiticeira satânica não parece diferenciar os filhos sádicos de Price dos integrantes mais "de boa" de sua família, em especial a jovem esposa (Essy Persson), já por demais desgraçada pelo casamento arranjado com um velho medonho, e a única filha (Hilary Heath), que, ao contrário de quase todos os irmãos, nada fez para merecer o pai desgraçado que tem.

Tal arranjo ajuda a não facilitar tanto assim as coisas pra plateia, ainda mais hoje em dia, que todo mundo parece condicionado a tomar partido rápido e definitivo sobre toda e qualquer questão, o que torna essa pequena joia do folk horror britânico particularmente recomendável a quem ainda se dispõe a suspender o tão precioso juízo para apreciar sabores agridoces e potencialmente mais indigestos, tipo uma inesperada (e deliciosamente incongruente) abertura em animação que Terry Gilliam deve ter feito no intervalo entre duas sketches do Monty Python, e uma curiosa variação do mito do lobisomem que pode até compensar o fato de que, no fim, não tem nenhuma banshee aqui.

Mas, afinal, estávamos nessa pelas bruxas, não é?😉

"Bruxa - A Face do Demônio"
The Witches (1966) de Cyril Frankel
Evidente que nem todo folk horror britânico do período caía nessa pegada de reafirmação, mais ou menos ambígua, do imaginário dos tempos medievais. Muitos se pautavam justamente numa abordagem mais crítica ao que se entendia como bruxaria, tanto na Idade Média quanto no contexto dos próprios movimentos New Age que atravessavam os anos 60 e 70. Tais filmes renderiam, por si só, toda uma nova série de postagens (num próximo halloween, quem sabe😉) mas queria destacar, por agora, um título que teria tudo para ser um desses, se não tivesse sido meio que sabotado no caminho.

The Witches (1966), de Cyril Frankel, foi um filme que considerei, por muito tempo, como um dos piores da Hammer Films. Uma história que começava até interessante, sobre uma professora primária (Joan Fontaine) que suspeita que há um coven de bruxas governando secretamente a cidadezinha em que acabou de se mudar, mas vai se deteriorando num enredo desconexo, com personagens cada vez mais caricatos, culminando num desfecho que me parecia um dos mais ridículos da história do horror britânico.

Kay Walsh, como Stephanie Bax,
sabá estranho, com gente esquisita...
Até que descobri que o roteiro de Nigel Kneale tinha sido originalmente escrito como uma comédia! Uma sátira mordaz à ideia de bruxaria moderna e todo o patético inerente aos rituais e o tipo de figura que teria a disposição de pratica-los.

Acontece que a Hammer não bancou a proposta e montou o filme como um terror convencional, bem ao estilo dessas tendências mais conservadoras de que temos tratado aqui. Uma dissonância que causa quase que um tilt semiótico na audiência.

Revê-lo, tendo isso em mente, transfigurou toda a experiência pra mim. O filme continua falho, como não poderia deixar de ser, mas a ironia do texto de Kneale se destaca como aquelas figuras nos livros em 3D quando observadas de maneira apropriada. E o clímax, que me parecia tão desastroso, se torna uma verdadeira obra-prima do nonsense britânico, digna de rivalizar com Monty Python. O "Sabá das Bruxas" mais sem noção da história do cinema!😅

E nada me tira da cabeça que Kay Walsh sabia exatamente o que estava fazendo com a sua todo-poderosa bruxa malvada, Stephanie Bax. Se duvida, repara bem na carinha dela na hora de começar o batuque.🤭

"A Filha de Satã"
Night of the Eagle AKA Burn, Witch, Burn (1962)
de Sidney Hayers
Enfim, dava pra falar de bruxas malvadas no folk horror britânico até o próximo halloween, mas acho que podemos fechar com um dos primeiros e mais fascinantes títulos a não apenas se apropriar do folclore da Idade Média numa ambientação contemporânea, como a adicionar uma certa dose de ambivalência ainda no começo dos anos 60, bem antes de abordagens mais ambíguas ou, no mínimo, mais complicadas dos 70.

Night of the Eagle (1962) pode ser resumido como um duelo entre duas "escolas" de bruxaria. Entre a magia branca e a magia negra (não no sentido de etnia, como se alardeia erroneamente hoje em dia, mas no seu sentido original de magia voltada para a proteção/auxílio e magia feita com a intenção explícita de prejudicar).

Janet Blair é a "bruxa boa" que faz de seu lar um aconchegante e superprotegido microcosmo de felicidade conjugal para o seu cético e rabugento marido, Peter Wyngarde, prestes a descobrir quão frágil é sua realidade ao jogar no fogo os talismãs e encantamentos da esposa, abrindo literalmente as portas para os ataques de uma feiticeira invejosa e muito mais poderosa, vivida por (☢️SPOILER☢️) Margaret Johnston.

Janet Blair, fazendo de tudo para salvar
o maridão da terrível bruxa malvada.
De cara, já salta aos olhos que duas mulheres disputando a alma de um homem é algo que soa bem mais problemático do que a forma como o enredo retrata os pressupostos da bruxaria, em princípio mostrada como uma força neutra, nem "boa", nem "", exceto pela disposição de suas praticantes (ainda que, se for ver, a "proteção" dada a uma pessoa ou família só poderia se realizar efetivamente mediante o prejuízo relativo das demais, mas suponho que dá pra dizer isso até da teologia da prosperidade😉).

Seja como for, num horror britânico é o macabro que interessa e poucas vezes as artes das trevas foram tão assustadoras como nessa obra de Sidney Hayers. Momentos como a coisa arranhando a porta ou o ataque da grande águia são fortes o bastante pra escavar vestígios de superstição no racionalista mais convicto e ajudar a pôr pra fora, de maneira mais "segura" e "controlada" (e com as devidas considerações progressistas😊), aquele grito primitivo que dá ao filme seu título internacional e nunca deixou, de fato, de assombrar nosso inconsciente: Burn, Witch, Burn!



🎃E um feliz Halloween!🤗